Festival de Águas Claras, em Iacanga, no interior de São Paulo, completa 44 anos com documentário que foi exibido em abril; diretor do filme negocia o lançamento das gravações dos shows em disco duplo e vinil
Roger Marzochi, do entresons.com.br
Nem a direita, nem a esquerda. Foram os hippies que revolucionaram os padrões de comportamento durante a abertura lenta e gradual da Ditadura (1964 – 1985), a partir do governo de Ernesto Geisel, em 1974. É esta a mensagem de “O Barato de Iacanga”, documentário que foi exibido em abril em São Paulo e Rio de Janeiro no festival “É Tudo Verdade”.
Thiago Mattar, diretor do filme, está em negociação com artistas que participaram do Festival de Águas Claras, na cidade paulista de Iacanga, entre 1975 e 1984, para lançar um CD com as gravações originais dos shows, que transitavam entre o rock e baião, com ícones como Luiz Gonzaga, Gonzaguinha, João Gilberto, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Alceu Valença, Raul Seixas, Walter Franco, Jorge Mautner e Gilberto Gil.
“O ideal seria fazer um álbum duplo. E aí entrariam duas músicas de cada artista. Eu acho que a gente precisa tornar esse material público. As pessoas precisam ouvir. Só o show do João daria um disco só dele. Existe uma máster, um original da gravação. E eu escutei e dá para lançar um disco ‘João Gilberto ao vivo em Águas Claras’”, diz Mattar.
O som viria também de registros feitos diretamente nas mesas de som, fitas k7 e fitas de vídeo cujos áudios seriam tratados, sem perder as características originais. Além de CD e streaming de música, a produção estuda o lançamento de um disco em vinil, para colecionadores. “Nós nos preocupamos com trabalho de arte, com um encarte bacana, possivelmente um pôster do cartaz do primeiro festival. Mas tudo depende de negociação”, explica o diretor.
Paz e amor – Os hippies escancararam e escandalizaram a abertura lenta e gradual de Geisel. Um ano após sua eleição e a histórica derrota da Arena nas urnas no Congresso, o Festival de Águas Claras virou Iacanga de ponta cabeça, em 1975. Nas edições seguintes de 1981, 1983 e 1984 reuniu até 75 mil pessoas, ganhando o reconhecimento como o “Woodstock Brasileiro”. A festival de rock dos Estados Unidos, realizado em 1969, influenciou diversos outros movimentos no Brasil, mas nenhuma com as dimensões de Iacanga.
Mattar chegou até essa história aos 20 anos, justamente quando, em 2009, assistia a um documentário sobre Woodstock. Ao presenciar o filho vendo aquelas cenas, seu pai contou que ele próprio havia participado de um “Woodstock Brasileiro”, em 1975. “Meu pai trabalhou como fiscal de barraca. Andava de um lado para o outro só de cueca, bota de cano longo e chapéu.”
A partir de então, Mattar empreendeu várias viagens de Dracena, cidade do interior de São Paulo onde vivia, para Iacanga, cidade de sua bisavó e de seu pai. Com uma câmera amadora, começou a registrar as histórias contadas por moradores e teve contato com Antônio Checchin Júnior, mais conhecido como Leivinha, flautista que idealizou o festival na fazenda de seus pais.
Com extensa pesquisa em cenas de época, jornais e entrevistas com moradores e músicos, Mattar conseguiu apoio da produtora bigBonsai para apresentar o documentário, que foi exibido no festival “É Tudo Verdade”, realizado em São Paulo entre 4 e 14 de abril e, no Rio de Janeiro, de 8 a 14 de abril. A reportagem do www.entresons.com.br esteve presente na exibição do filme no dia 25 de março, no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, em evento fechado à imprensa.
“Foi o primeiro grande festival alternativo do País e tem uma história de ativismo. Como fazer uma coisa dessas quando era impossível? É um festival que abriu muitos caminhos e cabeças”, diz Mattar, em referência à amplitude de ritmos da música brasileira que conviveram harmonicamente na plateia em plena Ditadura. “A fusão da atitude hippie com a música contemporânea, moderna e regional é uma mistura muito louca, que vai além da terminologia de ‘Woodstock brasileiro’.”
Gororóbas e cogumelos – O primeiro festival, em 1975, contou com bandas como a paulistana Jazzco, do contrabaixista e guitarrista Amador Bueno. “O clima era bem feliz apesar de ser a época dos milicos”, diz. “Colocaram a gente para tocar num sábado no fim da tarde, foi bom porque tinha o pessoal que morava em volta da fazenda. Deveria ter umas 35 mil pessoas. Iacanga foi bem legal, foi aquele paz e amor do Woodstock de 69”, diz Bueno, que tinha 24 anos nos idos de 75. Ao longo da estrada, Bueno lembra de ter visto muita gente pedindo carona, muita gente pelada na fazenda.
A comida era uma gororóba com arroz sobre a qual ele não tem boas lembranças. E nem chegou a conhecer a lagoa onde muitos nadavam nus. Ele ficava grudado ao lado do seu Fusca com medo que roubassem os instrumentos musicais do grupo. “Fui tomar banho numa tia em Bauru e voltei. E foi muito louco, o pessoal pegava cogumelo no pasto, tomava chá, tinha ácido, rolava todas lá. Mas não era só isso, não era só loucura”, diz Bueno. Naquele tempo, a Jazzco era uma banda de jazz-rock. E, hoje, é uma big band de jazz e música instrumental brasileira.
Para realizar o evento, Leivinha teve a coragem de assinar um documento na delegacia se responsabilizando por evitar o consumo de drogas e atos que atentassem contra a moral e os bons costumes, sob o risco de ser preso. Sem telefone (muito menos internet), o anúncio do festival foi sendo propagado pelos amigos músicos. E, aos poucos, barracas se estenderam pela grama da fazenda, muitos jovens tomaram conta da paisagem. Jornais de época davam conta que a multidão era de 15 mil pessoas.
E tudo foi acompanhado por um fotógrafo do aparato de repressão, que após o primeiro festival, entregou o material para investigadores. Rapidamente, as cenas de nudez, consumo de maconha e gritos de liberdade política acenderam o alerta na Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, que proibiu novos eventos.
João faz nascer o Sol – O segundo festival só foi realizado seis anos depois, após o grupo de familiares e amigos que participou da organização do primeiro evento conseguir apoio em Brasília. A partir de então o festival ampliou a sua dimensão, ganhando cobertura da mídia, em especial da TV Bandeirantes.
E conseguiu trazer, em 1983, ninguém menos que João Gilberto para o palco em Iacanga, época em que a mídia noticiava um público total de 75 mil pessoas. As cenas de João Gilberto na apresentação são muito emocionantes, varando a madrugada com sua voz suave, seu violão e dividindo o vocal com a plateia, até o sol nascer. “Foi um show histórico, o primeiro dele ao ar livre”, conta Mattar.
São também emocionantes as cenas de época de Hermeto Pascoal, Gilberto Gil, Egberto Gismonti, Sandra de Sá e Gonzaguinha. O documentário soma 93 minutos, mas é possível ampliar para uma série de até quatro horas, diz Mattar. Só de material da TV Bandeirantes, que foi emissora oficial do evento em 1981 e 1983, há 20 horas de gravação. “É muito difícil condensar. Fiz priorizando a história, mas muita coisa ficou de fora, como o Belchior, no festival de 1984.”
Com o sucesso, choveram patrocinadores, que exigiram um festival em pleno carnaval em 1984. E, literalmente, uma chuva absurda colocou abaixo os sonhos dos jovens músicos: o último festival foi um completo desastre. Traumatizado, Leivinha evita falar em flauta, mudou-se para a Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso, onde tem uma pousada e um restaurante. E tentou apagar da sua mente a história do festival.
Mattar avalia que o festival foi um exemplo de como é possível a juventude se mobilizar mesmo frente à falta de liberdade de expressão. “Como diz o Gilberto Gil, o festival foi a vitória em uma pequena batalha, uma miniguerra cultural”, explica. Hoje, com o atual Presidente da República defendendo abertamente uma comemoração do Golpe de 1964, “O Barato de Iacanga” é um incentivo para que a classe artística e o público não desanimem.
“Nosso País perdeu a memória. Tem uma onda de conservadorismo tomando conta do País. É realmente importante que a juventude renasça e enfrente essa questão. Não dá para a gente ficar voltando para traz, cultuando um passado de mentira, de censura, de restrição de liberdade. A juventude está muito careta. E está fazendo falta um movimento do tipo Águas Claras”, afirma o cineasta.