Tradição oral no campo se mantém para que trabalhadores lidem com suas próprias emoções; nas cidades, Receita Federal tem projeto de preservação da memória
Roger Marzochi, do entresons.com.br
Você já contou carneirinhos para conseguir dormir? Pois saiba que o trato desses animais inspira muito mais que o sono dos noctívagos. Em Piratini, no interior do Rio Grande do Sul, homens que retiram lãs de ovelhas sem o uso de máquinas, da forma mais tradicional possível, contam entre si histórias de assombrações das centenárias fazendas da região. Em Águas de Santa Bárbara, no interior de São Paulo, coletores de café também trabalham contando causos. É uma demonstração que vive forte a tradição oral apesar dos avanços da tecnologia.
O trabalho é mais que um meio de se obter recursos financeiros para sobreviver. É, também, um ambiente de socialização que reforça vínculos afetivos e sociais. Resistem até hoje histórias que são contadas no ambiente de trabalho que servem tanto para reforçar tradições, cultivar a memória e relatar experiências de vida. Além de histórias da tradição oral, o trabalho também motiva a memória. A Receita Federal possuiu um projeto chamado “Histórias de Trabalho”, que registra em livros a experiência vivida por servidores no dia a dia de seus escritórios.
Primeiro, vamos ao campo. Os causos de assombração rondam a Fazenda Santa Izabel, em Piratini, propriedade de Andrea Madruga, artesã que há dez anos criou o Fio Farroupilha, ateliê de roupas de lã. Suas mantas, ponchos e outras vestimentas, que traduzem a cultura dos pampas e andina, chegaram aos centros de grandes cidades e conquistaram clientes no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e a até nove países.
O desejo do consumidor das grandes metrópoles de estar próximo a produtos que refletem as paisagens bucólicas do campo explica parte desse sucesso, mais vai muito além do designer: a preocupação com a sustentabilidade. O ateliê usa forno a lenha, com madeiras caídas naturalmente no chão, e as tinturas são feitas a partir de raízes e ervas da fazenda Santa Isabel.
A busca por sustentabilidade é seguida, também, pela preservação cultural da retirada de lã das ovelhas, conhecida como “esquila”. Apesar do avanço cada vez maior da tecnologia no campo, Andrea defende costumes antigos que contribuem para valorizar o seu produto final. “É quase uma unanimidade entre os técnicos o uso da esquila Tally-Hi (com uso de máquinas)”, explica Andrea. “Nós ainda utilizamos a esquila à martelo (com uso de tesoura). Nós temos alguns objetivos na criação e no ateliê, que é o de manter o mais tradicional possível, com a menor intervenção química no ateliê e de máquinas na fazenda.”
Para ela, a mecanização dessa importante parte do processamento da lã prejudicaria a cultura dos esquiladores. “Se nós levarmos o Tally-Hai para lá, vamos eliminar a cultura dos esquiladores. A cultura dos causos no galpão, das conversas e do barulho das tesouras. Isso tudo faz parte de uma cultura de muitos anos, são séculos de cultura. E queremos preservar isso enquanto estivermos por aqui.”
Durante o processo de esquila, além dos causos contados, muitas vezes de assombração envolvendo fazendas centenárias da região, os esquiladores se alimentam de pratos típicos, como o pastel de carne de ovelha e o arroz carreteiro. “Se inserirmos uma máquina no meio desse romantismo todo, dessas risadas todas e dos causos até de assombração que eles contam, nós vamos transformar a esquila extremamente rápida e totalmente sem graça.”
Reagindo à vida – O filólogo Waldemar Ferreira Netto, professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (USP), já teve a oportunidade de acompanhar as histórias contadas por coletores de café, em Águas de Santa Bárbara, no oeste de São Paulo. O especialista em tradição oral e cultura indígena estava na região e ouviu, por acaso, os causos que eram contados por esses trabalhadores. Essa prática não se transformou em uma pesquisa científica, mas pode colaborar com a compreensão de quão importante é a tradição oral.
“Apesar de a oralidade ter ficado marginalizada em tempos de internet, nos textos online, ela permanece viva. Especialmente em alguns ambientes onde a informação só pode ser transmitida oralmente”, diz Ferreira Netto.
O estudioso lembra que a oralidade tem sua grande força vinculada à forma como educamos as crianças. As narrativas são a maneira mais convincente de mostrar como o mundo funciona. “A criança sente e vive as personagens e as relações e, consequentemente, entende como se comportar no mundo, quando ficar triste, ou como sentir o mundo. Todas essas informações são passadas por histórias contadas oralmente.”
No caso dos esquiladores de Piratini ou dos coletores de café de Águas de Santa Bárbara, Ferreira Neto acredita que muitas das histórias têm o intuito de preparar as pessoas sobre coisas que podem vir a acontecer na realidade. “É um processo fantástico de manutenção de comportamentos e questões emocionais, voltada mais para a pessoa saber a conviver com as suas próprias emoções do que replicar comportamentos padronizados. Essas histórias não ensinam como se comportar na sociedade, mas como se deve reagir à vida.” Ele cita, por exemplo, histórias que são narradas para preparar o sujeito para receber a notícia da morte de um amigo ou familiar, por exemplo.
Anjo da lápide – Mas não é apenas em ambientes rurais que a memória é cultivada. A Receita Federal do Brasil promove, há oito anos, o concurso “Histórias de Trabalho”, no qual os servidores contam não apenas suas experiências de vida dentro da instituição, mas até mesmo histórias importantes sobre a constituição de alfandegas.
As histórias de atendimento a casos curiosos são saborosas, como a contada pelo servidor Edson Fernandes da Cunha, de Goiânia, no conto “O anjo da lápide”, publicado em 2010. Ele atendeu um pedreiro que queria regularizar as terras que havia adquirido de uma senhora, morta na década de 1970 aos 87 anos, que não deixou para trás nenhum bendito documento. Era preciso, no entanto, a data de nascimento da vendedora e o CPF para emitir uma certidão negativa. Como não foi possível encontrar o documento em cartórios, o pedreiro arrancou a placa da lápide do cemitério como prova.
O senhor simplesmente levou a placa de mármore negro para dentro da unidade da Receita Federal, em Goiânia. Alertado que isso era crime, o pedreiro voltou para devolver a placa, mas foi preso em flagrante por profanar uma sepultura. Na delegacia, o cidadão explicou do que se tratava e, inclusive, pediu para que o delegado ligasse para o funcionário da Receita para confirmar a narrativa.
Ao
confirmar a história do pedreiro, Fernandes da Cunha achou uma forma de
resolver o impasse: pediu para que se incluísse no Boletim de
Ocorrência a data de nascimento da falecida, para que assim pudesse
resolver o problema da falta de documentação de uma vez por todas. E,
como o relato do pedreiro foi fiel, o delegado encerrou o caso.
Histórias como essas são publicadas em livros há oito anos e podem ser
lidas no site da Receita Federal.