Roger Marzochi, do entresons.com.br
O que Glenn Miller, líder de uma das mais famosas orquestras de jazz dos anos 1930 e 1940, tem em comum com o jongo e o samba de bumbo, expressões afro-brasileiras por meio das quais os escravos buscavam manter a dignidade e a memória de sua cultura e que estão vivas até hoje? O que a princípio parece não ter conexão alguma, a não ser pelo fato de serem expressões culturais que receberam influência da diáspora africana na América, torna-se revelador em uma pesquisa realizada pela antropóloga Érica Giesbrecht para a sua tese de pós-doutorado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): bailes glamorosos organizados pela comunidade negra da cidade durante os Anos Dourados, com músicas como “In the Mood” e “Moonlight Serenade” tocadas por orquestras, contribuíram para o fortalecimento de expressões culturais afro-brasileiras na cidade.
“A comunidade negra que existe hoje em Campinas teria a força que ela tem se não fosse por essa comunidade que foi criada pelos bailes do passado? Quem está hoje no movimento negro são os filhos e netos da geração dos bailes. Como que as pessoas se engajaram tão rapidamente no movimento negro? De onde vem essa união? Ela vem do engajamento de milhares de pessoas do passado, algumas estão ainda vivas, e continuam através das outras gerações. Os bailes do passado, o jazz que era tocado lá, ajudaram nos repertórios tradicionais, como o jongo”, afirma Érica.
Ao longo da sua tese de doutorado “Jongos, Batuques e Samba de Bumbo: Dançando a memória negra de Campinas”, Érica se aproximou dos membros mais velhos dos grupos tradicionais, chamados de “griot”. E ela percebeu que, apesar de fazerem parte de expressões como o jongo, o samba de bumbo e o maracatu, que dizem respeito à memória ancestral, eles haviam participado em sua juventude de eventos que não estavam relacionados com essas expressões, que só ganharam força na cidade na década de 1990, com apoio de pessoas como a folclorista Raquel Trindade, momento no qual além da dimensão cultural, foi também fortalecida expressões relacionadas à música, dança e teatro.
“As memórias da mocidade deles estão mais ligadas a orquestras e do jazz do que dos jongos, embora eles passassem por tudo isso. Eles mesmos se interessavam por outra forma de música, que era muito importante. Um baile reunia de 600 a mil pessoas, imagina agendar e organizar tudo isso? É um evento musical que engaja muita gente e formava uma comunidade. Essa comunidade de baile vem impregnada na vida deles”, explica ela, argumentando que os bailes serviram como uma forma de articulação do movimento negro, que colaboraram para as expressões culturais de raiz.
Ela cita, por exemplo, que é possível encontrar fotos da época de bailes com a participação de muita gente que tinha atuação firme na reafirmação dos direitos e na luta contra o preconceito, como Laudelina de Campos Mello, fundadora da Associação Profissional Beneficente das Empregadas Domésticas em Campinas, que inspirou organizações semelhantes em outras cidades até a constituição do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos. “Teve gente do movimento negro de agora que me criticou, dizendo que o baile era espelhado nos brancos: se os brancos fazem, também podemos fazer, como se isso fosse uma perda de identidade. Eu tive essa crítica também. Mas eu acho que o negro no Brasil tem múltiplas facetas: tem o jongo, o samba de bumbo, mas e se o olho da pessoa brilha quando se fala em Glenn Miller? Como você vai negar essa memória? Eles viveram isso, foi verdade, por menos raiz que seja.”
Além de pesquisadora, Érica se transformou em produtora cultural e documentarista. Ao perceber a importância que os bailes do passado exerciam sobre os membros mais velhos dos grupos afro-brasileiros, ela liderou uma campanha no ano passado de arrecadação de fundos para recriar os bailes de antigamente. O resultado foi positivo, e o baile foi realizado com sucesso. E, neste ano, o evento ocorrerá pela segunda vez, no dia 4 de abril de 2015, no Clube Regatas, às 22h.
Ela também gravou um documentário sobre a realização do evento em 2014, que conta ainda com depoimentos de cinco pessoas que participavam dos bailes de antigamente e cujas vidas foram permeadas pela segregação racial na cidade. O documentário, chamado de “Um baile para matar as saudades”, será exibido no dia do baile. O filme relata memórias como a de Tia Nice, que foi impedida em entrar em uma escola particular por ser negra, mesmo após ter obtido uma bolsa de estudos. “Como eu consigo ver hoje, após o tempo de trabalho, é que existiam varias formas de resposta ao racismo. O baile era a resposta elegante, era a resposta refinada ao racismo.”